domingo, setembro 20, 2015

O diário do Homem mau 1.

O que aqui relato neste meu diário aconteceu ontem, pela uma da madrugada, quando a porta da minha cozinha se abriu repentinamente, fazendo estremecer os móveis pendurados na paredes velhas do costume. Eu estava à janela a fumar e ela veio ter comigo, "tu já não me escreves um poema há anos", disse, seguindo-se um chorrilho de tu-não-isto, tu-não-aquilo. Se pudesse fechar os ouvidos e olhar só para a sua expressão, diria que estava a ladrar. Ela também não era a mulher de outros tempos. Não disse nada, deixei-a gritar. Comovi-me, porém, quando, encostada ao frigorífico, escorregou por ele abaixo, e aninhada no chão, desatou a chorar. Soluçava profundamente. Foi-se embora depois, derrotada, quando percebeu que eu não iria abrir a boca.

Passou uma hora, passaram duas, três até, quando fui para a cama mais sossegado, pois já não haveria perigo de voltar ao massacre do tu-não-isto. Queria dormir, descansar os ossos, mas eis que sou acometido por uma urgente vontade de vomitar o que há anos andava aqui entre o peito e a boca.

Levantei-me e numa golfada escrevi:

Foi-se o desejo
nos desencontros do tesão,
ora eu te queria
e ninguém estava,
ora querias-me tu
e eu declinava;
entre papeis vários,
inadiáveis responsabilidades
e contas sem fim,
mais o ranho,
as birras
e a falta de pilim,
matamo-nos em utilidades.
Somos uteis amor.
Apenas uteis.
E depois há sempre um parente doente
ou quase a morrer,
... que vontade de foder?

Coloquei-o no frigorífico. "Aqui tens o poema", sublinhei.
Dormi profundamente. Leonor Paiva Watson