segunda-feira, junho 27, 2016

O diário do Homem mau 52.

Assim falou Camus: "O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. E sabia também que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz."

"A Peste" encontrei-a aqui perdida, deveria estar na casa do Alentejo, mas anda por aqui. A peste está em todo o lado, a incubar, à espera do desespero dos homens comuns, daqueles que não mais confiam e querem castigar os seus líderes, ratos vis e sujos que minaram a confiança nas instituições, que deixaram os povos à mercê da solidão, que os deixaram à mercê do ressentimento que leva às más decisões, dos ratos ainda piores que hão-de vir.

...vou fumar um cigarro lá fora. Lembrar a noite com a Zulmira, lembrar o amor feito ainda às escondidas no quarto proibido. Não queria a Maria Leonor que abrisse aquele quarto, que enfrentasse os meus fantasmas? Não abriu ela a porta sem aviso, libertando todas as dores e esfregando-me a poça de sangue que ainda hoje vejo no chão? Não queria que enfrentasse a morte? Pois bem, foi em cima da morte que reinventei vida. Ah, Maria Leonor, não se brinca com um sobrevivente.

Um cigarrinho e uma mijinha no plátano. Volto daqui a bocado, preciso escrever e olhar as ancas da Zulmira a arrumar a casa em silêncio.

Regresso, devidamente oxigenado e aliviado.

E regresso a Camus, pela boca de Rieux: "...para desgraça e ensinamento dos homens". Certo da desgraça, completamente incrédulo face ao ensinamento. Se alguma coisa alguma vez tivéssemos aprendido, os ratos estariam já eliminados. Olho para o Mundo e nada me apraz dizer, excepto que metade morre de fome, a outra metade de falta de valores; e todos morrem às mãos de elites corruptas, da lei do mais forte, de gente que deu cabo de projectos que poderiam, de facto, ter construído um Mundo melhor. Políticos, diplomatas, Comunicação Social, todos, desde o mais pequeno exemplo, ao maior, traíram e traem todos os dias os seus.

O Homem comum está só. No melhor dos mundos, é tratado com condescendência, com falta de respeito, é enganado com um sorriso nos dentes e a conivência dos Media. O Homem comum não confia. A existência das instituições e organizações que deveriam protegê-lo são governadas por charlatães, por conveniências de maior ou mais pequena escala. Falharam. Falhou assim a Democracia e não tenho grandes dúvidas (mas eu sou um velho, pessimista por convicção) de que o Homem comum há-de castigá-los, decidindo ainda pior, cedendo pois aos seus medos, elevando ao Poder ratos ainda piores.

Poderemos estar assim tão admirados com os Brexits da vida?

Hão-de os medos fazer os dias. Ergueremos mais barreiras e divisões, ouviremos sobre os povos papão. Ouviremos ainda sobre o Deus bom e os Deuses maus. Todos, todos os velhos fantasmas se levantarão porque o Homem comum, que tem medo e está só, não sabe que não é a ausência de fronteiras e o Deus dos outros que provoca a morte, mas sim os homens-elite, os que elevaram a Deus o dinheiro e a ganância.

Tece assim o Homem comum, na sua ignorância, na sua solidão, na sua alma de homem traído, o regresso do fascismo. E o que há de novo aqui? Nada. Absolutamente nada.

Assim falou Camus: "...os homens são sempre os mesmos". Leonor Paiva Watson

sexta-feira, maio 20, 2016

O diário do Homem mau 44.

Sou a favor da eutanásia e respeito suicídio. Não me apetece escrever sobre as devidas diferenças, apenas que a libertação é um direito.

...no fim, o Coelho já mal falava, já mal pronunciava a palavra, arregalava os olhos e pedia "morf", pela metade. O rosto daquele pedido era o retrato do terror. Lembro o dia em que tive de fazer o percurso do seu quarto até à sala do médico para dizer o impensável. "Ambos sabemos que vai partir, dê-lhe morfina e em força." Assim, a seco. A mãe a olhar-me, curvada, mirrada, consentiu com a cabeça. Assumíamos ali a sentença.

Ninguém quer morrer, abandonar os seus, ninguém deixa de amar aqueles por quem daria a vida, mas há dores tão agudas, tão inenarráveis, que deixam tão sem vida, tão só apenas com a carcaça, que, perante elas, só um psicopata, que não consegue colocar-se no lugar do outro, que tem o secreto desejo de ver sofrer, de controlar aquilo que não lhe diz respeito, pode argumentar contra o direito de libertação.

...A morfina não resultou. Mas a morte foi generosa e veio depressa. Mas e se não viesse? Por quanto tempo teria aquele corpo de suportar aquele sofrimento excruciante? Apenas, e só apenas, enquanto quisesse. Ponto.

E Deus? Deus é Amor, e habita nos homens livres. O resto é medo ou, pior, Poder. Leonor Paiva Watson

quinta-feira, janeiro 21, 2016

O diário do Homem mau 9.


Não encontro "Portugal, Hoje - O Medo de Existir", do José Gil, e já estou fodido. Do que mais me irrita é não saber dos meus livros. Da cidade foi o que trouxe: umas largas centenas deles. Relativamente à maioria das coisas, estou-me cagando, mas exijo saber onde está cada livro meu, e quando ela mos muda de sítio fico possuído. Já andei ao pontapé e à mocada às estantes.

Não encontrei o que queria mas encontrei "A Arte de Viver" do Epicteto e, como sempre faço, abri-o ao acaso e esbarrei nesta frase:"É sinal de pobreza de espírito gastar muito tempo com assuntos que digam respeito ao corpo, tais como muito exercício, muita comida, muita bebida, defecar ou praticar o coito com frequência." Enfim...

À parte do defecar, que me parece um imperativo biológico incontornável, tenho para mim que, mais tarde ou mais cedo, todo o homem deixa de dar importância às coisas que o filósofo refere, pois todo o Homem faz voto de pobreza, obediência e castidade, quer queira ou não. O meu de pobreza foi quando me vi sozinho a suportar financeiramente uma família durante anos. O de obediência foi quando me morreu o melhor amigo nos braços, aí a gente sabe quem Manda, os joelhos dobram e "seja feita a sua vontade, a Sua vontade, assim na Terra como no Céu". O da castidade vem com o da obediência: acorremos às exigências da vida, reduzimo-nos a úteis, e com o chorrilho de mentiras que vamos ouvindo a  cada esquina, aprendemos a evitar o sentir, ou melhor, o pesar do sentir.

Não percebo a pertinência de Epicteto em referi-lo. Não vejo onde esteja a necessidade de querer limitar precocemente o que a vida acabará por limitar. O mesmo digo das religiões, sempre a carência de controlar as massas, e de se meterem naquilo que só a cada um diz respeito. Tenho para mim que o Homem jamais conseguiria trocar a sua individualidade, que é o que o distingue dos restantes animais, pela natureza de uma formiga, que não existe sem a repetição exacta do que fazem as companheiras de carreiro... Claro que muitos de nós fazem bem de conta que são formigas, mas deve ser por isso que existem palavras como "falsidade", "conveniência" e "neurose".

Enfim, há toda uma vontade de contrariar a humanidade, de acabar com a sensação, e criar a perfeição, que me indigna deveras... E que tem Deus que ver com isto? Com esta prepotência dos homens, das religiões, das igrejas? Nada, me parece.

Termino fodido porque ainda não encontrei o livro que queria, mas recordo uma frase de  Epicuro, na sua "Carta Sobre a Felicidade": "Todo o Bem e todo o Mal residem na sensação, e a morte é a erradicação das sensações". Só a morte. Morremos é, muitas vezes, antes de o corpo falir... não valerá a pena, portanto, tanta preocupação por antecipação.

Continuo sozinho, trato do campo, vou lendo e escrevendo. A velha não manda notícias...

Vou defecar. Leonor Paiva Watson

domingo, setembro 20, 2015

O diário do Homem mau 1.

O que aqui relato neste meu diário aconteceu ontem, pela uma da madrugada, quando a porta da minha cozinha se abriu repentinamente, fazendo estremecer os móveis pendurados na paredes velhas do costume. Eu estava à janela a fumar e ela veio ter comigo, "tu já não me escreves um poema há anos", disse, seguindo-se um chorrilho de tu-não-isto, tu-não-aquilo. Se pudesse fechar os ouvidos e olhar só para a sua expressão, diria que estava a ladrar. Ela também não era a mulher de outros tempos. Não disse nada, deixei-a gritar. Comovi-me, porém, quando, encostada ao frigorífico, escorregou por ele abaixo, e aninhada no chão, desatou a chorar. Soluçava profundamente. Foi-se embora depois, derrotada, quando percebeu que eu não iria abrir a boca.

Passou uma hora, passaram duas, três até, quando fui para a cama mais sossegado, pois já não haveria perigo de voltar ao massacre do tu-não-isto. Queria dormir, descansar os ossos, mas eis que sou acometido por uma urgente vontade de vomitar o que há anos andava aqui entre o peito e a boca.

Levantei-me e numa golfada escrevi:

Foi-se o desejo
nos desencontros do tesão,
ora eu te queria
e ninguém estava,
ora querias-me tu
e eu declinava;
entre papeis vários,
inadiáveis responsabilidades
e contas sem fim,
mais o ranho,
as birras
e a falta de pilim,
matamo-nos em utilidades.
Somos uteis amor.
Apenas uteis.
E depois há sempre um parente doente
ou quase a morrer,
... que vontade de foder?

Coloquei-o no frigorífico. "Aqui tens o poema", sublinhei.
Dormi profundamente. Leonor Paiva Watson