quinta-feira, janeiro 21, 2016

O diário do Homem mau 9.


Não encontro "Portugal, Hoje - O Medo de Existir", do José Gil, e já estou fodido. Do que mais me irrita é não saber dos meus livros. Da cidade foi o que trouxe: umas largas centenas deles. Relativamente à maioria das coisas, estou-me cagando, mas exijo saber onde está cada livro meu, e quando ela mos muda de sítio fico possuído. Já andei ao pontapé e à mocada às estantes.

Não encontrei o que queria mas encontrei "A Arte de Viver" do Epicteto e, como sempre faço, abri-o ao acaso e esbarrei nesta frase:"É sinal de pobreza de espírito gastar muito tempo com assuntos que digam respeito ao corpo, tais como muito exercício, muita comida, muita bebida, defecar ou praticar o coito com frequência." Enfim...

À parte do defecar, que me parece um imperativo biológico incontornável, tenho para mim que, mais tarde ou mais cedo, todo o homem deixa de dar importância às coisas que o filósofo refere, pois todo o Homem faz voto de pobreza, obediência e castidade, quer queira ou não. O meu de pobreza foi quando me vi sozinho a suportar financeiramente uma família durante anos. O de obediência foi quando me morreu o melhor amigo nos braços, aí a gente sabe quem Manda, os joelhos dobram e "seja feita a sua vontade, a Sua vontade, assim na Terra como no Céu". O da castidade vem com o da obediência: acorremos às exigências da vida, reduzimo-nos a úteis, e com o chorrilho de mentiras que vamos ouvindo a  cada esquina, aprendemos a evitar o sentir, ou melhor, o pesar do sentir.

Não percebo a pertinência de Epicteto em referi-lo. Não vejo onde esteja a necessidade de querer limitar precocemente o que a vida acabará por limitar. O mesmo digo das religiões, sempre a carência de controlar as massas, e de se meterem naquilo que só a cada um diz respeito. Tenho para mim que o Homem jamais conseguiria trocar a sua individualidade, que é o que o distingue dos restantes animais, pela natureza de uma formiga, que não existe sem a repetição exacta do que fazem as companheiras de carreiro... Claro que muitos de nós fazem bem de conta que são formigas, mas deve ser por isso que existem palavras como "falsidade", "conveniência" e "neurose".

Enfim, há toda uma vontade de contrariar a humanidade, de acabar com a sensação, e criar a perfeição, que me indigna deveras... E que tem Deus que ver com isto? Com esta prepotência dos homens, das religiões, das igrejas? Nada, me parece.

Termino fodido porque ainda não encontrei o livro que queria, mas recordo uma frase de  Epicuro, na sua "Carta Sobre a Felicidade": "Todo o Bem e todo o Mal residem na sensação, e a morte é a erradicação das sensações". Só a morte. Morremos é, muitas vezes, antes de o corpo falir... não valerá a pena, portanto, tanta preocupação por antecipação.

Continuo sozinho, trato do campo, vou lendo e escrevendo. A velha não manda notícias...

Vou defecar. Leonor Paiva Watson